segunda-feira, dezembro 20, 2021

Entre a máquina de costura e a máquina fotográfica: uma resenha de "O lugar que somos" de Laryssa Andrade


Durante a pandemia, fui atravessada por memórias não vividas por mim.

O lugar que somos rememora, através de vestes e objetos, o espaço coletivo onde a história das mulheres da minha família se moldou desde 1940, sendo a costura o nosso símbolo de força, poesia, amor, dor, e sustento desde então.

– Laryssa Andrade sobre seu próprio documentário.

O lugar que somos (Maceió, 2021) é um documentário dirigido, roteirizado e montado por Laryssa Andrade, fotógrafa, escritora, pesquisadora em estudos sobre imagens e feminismos e integrante do Punho Coletivo – iniciativa de mulheres alagoanas produtoras de conteúdo audiovisual. O filme foi selecionado para a 12ª Mostra Sururu de Cinema Alagoano, sendo exibido em intervenções urbanas realizadas pelos bairros de Maceió como parte da sessão Sentir. Foi também candidato em votação popular no site do evento, onde permanece disponível para streaming. A obra orbita o lugar da costura nas vidas das mulheres da família de Laryssa, conforme alerta a sinopse.

O filme traz a prosa memorialística de Meran, Selma e Vilma em suas experiências com a costura, a princípio como objeto da curiosidade típica dos 4 ou 5 anos de idade, mas também enquanto exercício de distração, demonstração de afeto e ganha-pão, quando as preocupações se tornaram outras. Entre as Andrade o movimento da agulha e da linha é como sangue, um elo poderoso diante da certeza cabal do tempo: ele passa. E embora passe, o tempo não sai impune aos relatos daquelas mulheres. Elas insistem no tecer de suas vidas e conjuram uma sabedoria quase espectral, uma voz que não escutamos em momento algum no documentário, mas se faz ouvir pela apropriação do silêncio em recusa ao estatuto de memória – é Maria José, Dedé, como a chamam as consanguíneas, que cose suas narrativas como fazia com os vestidos que preparava.

Captura de cena do filme

Em certa altura do filme tornou-se impossível não relembrar Bordado y costura del texto, artigo no qual Tamara Kamenszain relaciona escrita e espaço e trabalho domésticos a partir da ideia da mulher como sujeito responsável pela trama da história familiar. Aponta que mulher a escreve e/ou tece por meio das diversas atividades domésticas, dentre as quais a costura. Em nível abstrato, isso traduz o que no filme é o rigor da consciência expandida de dona Dedé, com suas percepções acerca de problemas da ordem do gênero e a compreensão de que, para ser “costureira de verdade”, era necessário lidar com a imposição do trabalho da casa, do cuidado com os filhos, tarefas tantas vezes usadas como chancela do ser mulher.

Aqui, contudo, não se fala de conformação, mas de certa rebeldia – ser costureira era necessário para ter o que comer e vestir, para dar de comer aos filhos e vesti-los também. Na ausência colocada pela partida do marido, uma das narradoras encontra na costura o espaço para reconhecer-se motor do futuro de sua família, essa responsabilidade imperativa que a fez recusar um convite para trabalhar num ateliê do Rio de Janeiro. São evidentes, portanto, os cruzamentos entre afetividade e classe nos olhares das mulheres com as quais lida Laryssa. E esses cruzamentos também estão presentes na força dela (que tem um apelido tão carinhoso quanto o de Dedé, Lary), pois sua opção pela máquina fotográfica ao invés da de costura demarca uma escolha de outra grandeza. Ela conhece o lugar de onde veio, sabe onde se encontra e tem suas lentes focadas onde quer chegar, mas é urgente a contação das histórias que seguram sua mão nesse percurso.

As mensagens nos alcançam por meio de um fio condutor muito próprio de alguém cujo olhar possui afinação poética, algo que não falta em Laryssa. Essa sensibilidade está presente desde o título do filme, que empresta um verso de poema de Ana Miranda: “E quando ali retornarmos/Verás que nunca nos fomos/Pois o lugar onde estamos/O lugar onde estaremos/É sempre o lugar que somos.” A diretora nos brinda com imagens de álbuns de fotografia, máquina e demais instrumentos de costura, roupas estendidas no varal e outras feitas em casa, de modo que, muito sutilmente, tudo ganha novas proporções com os relatos ao fundo. Há ainda outras imagens do cotidiano urbano intercaladas em momentos estratégicos, como convites para perceber a beleza desse espaço e como nele se costuram, diariamente, tramas infinitas; como se evocasse esse espaço para nos trazer para dentro, para esse lugar que todos nós, a partir de nossas experiências coletivo-individuais, também somos. 

Enquanto neto de costureira, tendo crescido entre pilhas de Moda Moldes – cujos moldes eu abria como se fossem mapas de navegação para terras longínquas, e de certa forma eram mesmo – e observando a dinâmica do ateliê de minha avó, posso dizer que assistir O lugar que somos trouxe muitas memórias afetivas. Laryssa trabalha de forma tão especial com o poético e o político, guia a atenção do espectador exatamente para o lugar onde deseja que esteja e o faz como quem envia um convite cor-de-rosa embrulhado em papel de seda.

Se Dedé é linha e agulha, é também o lugar que são as Andrade; é ela quem traja primeiro a indumentária da costureira, ajustando-a para cada uma das que viriam depois. E se Laryssa é filme e foco, e talvez a primeira de sua família a substituir a máquina de costura pela fotográfica como objeto de trabalho, tem muito de Dedé. Arrisco dizer que foi com ela que aprendeu a “costurar”, pois, através do gesto do dedo no botão da filmadora, Lary captura a trama da vida das mulheres de sua família em um exercício que a coloca diante da própria história. Ambas, Laryssa e Dedé, nesse lugar que são, tomam para si a tarefa de manter viva uma tradição, de manter aceso algo grandioso e inexplicável – você pode chamá-lo de amor ou de luta.