sábado, setembro 14, 2019

Como se pesassem mil atlânticos, de Bianca Gonçalves


Estive lendo o livro de Bianca nos últimos dois meses. Minha relação compassada com a poesia refletida na extensão do exercício, além do propósito de fazê-lo durar – um poema aqui, outro ali e mais um acolá. Mas o livro por si só pede uma leitura mais lenta e atenta. Terminei com um gostinho de resenha na boca e resolvi escrever. Entrego algo entre um apanhado de impressões e sentidos e um ensaio de resenha (ando interditado), talvez muito mais daquilo do que disso.

Com vários textos em revistas e blogs pela internet, Bianca estreia em publicação impressa com Como se pesassem mil atlânticos (Urutau, 2019), trazendo as forças da memória, do corpo e dos sentidos. Todas presentes ao longo das três partes que compõem o livro.

Li “Mulher nova ordem mundial” – ao mesmo tempo seção de abertura e convite de permanência – como quem observa um quadro pintado com sinceridade. Versos sobre estender roupas no varal, soltar pipa e tatear o corpo na frente do espelho constroem uma mística que me fez sentir como se estivesse compartilhando memórias com uma velha amiga. Me parece o início de uma história despida na irregularidade das dores e delícias da vida contada em poemas. Dessa série de textos é “encontro com as pedras de v. woolf” que me toca de forma particular. A atmosfera melancólica estabelecida desde o nome, para mim, é um dos momentos mais bonitos do livro:

queria ficar em casa: cama limpa e camomila
os braços moles nus
soltos como vieram
e sairão deste mundo

Embora minha inclinação evidencie o melancólico, não é isso que dá o tom da obra. Penso as imagens do feminino e o erotismo fazendo as vezes como elementos que se encontram e distanciam na travessia dos mares de Bianca. “Twerk na calçada” coleciona parte disso somando questões contemporâneas. A bissexualidade em “outra quadrilha” e a emancipação evidente no divertido “gola ciganinha está mais a ver”, além dos aspectos culturais levantados em “aculturação” e, principalmente, “entre Paul Gilroy e o rap que não fizemos”. Este último mesclando pertencimento étnico ao afetivo entre dois corpos – o sentido é quase palpável:

mas teu corpo de homem também é uma ilha
cujas partes unidas são minhas reconhecidas
também são minhas as tuas ruínas

A referência ao oceano Atlântico acontece nesse poema e retorna no seguinte, “tua presença”, que empresta dois versos ao título do livro. As águas conduzem a lugares distantes, em termos geográficos e de tempo, mas também funcionam como metáfora para o peso de emoções, sentimentos e experiências de todo um povo negro. Tendo o Atlântico sua própria carga enquanto rota do comércio de escravos que desembocou na diáspora africana.

A seção que encerra o livro é “outra” que continua trazendo elementos afetivos aliados às questões raciais. São exemplos “museu afro brasil” e “necropolítica”, este de um eu lírico ciente das ameaças, uma mão estendida em resgate de águas agitadas:

escrever um poema a um homem
antes que o levem
antes que ele se perca numa
estrada vazia                 antes
que ele desista
de sua própria vida

escrever um poema a um homem
antes que o joguem água fria
ácidos ou gás                     antes
que em praça pública
depositem sua cabeça
numa bacia

escrever um poema a um homem
escrito em caneta rosa
com ponta fina
um poema que toque
e o faça tocar
cada parte de sua estrutura
física

um poema que reduza a estatística
e que meu amor
traduz

antes que seja tarde
antes que o deus deles
apague sua luz

Essas questões aparecem, explicita ou implicitamente, a partir de várias forças. Uma mulher negra escrevendo sobre ancestralidade, corpo e desejo, ocupando esse lugar historicamente negado às mulheres. Uma mulher negra tecendo sua escrita feminista com instrumentos de memória e sentimento, trabalhando anseios e alívios a partir de suas vivências na contemporaneidade. Uma mulher negra escrevendo. Ato político desde a concepção.

E assim o livro vai se construindo com mais força a cada poema, firmando um lar sobre as águas. Esse lugar que pode ser uma memória, o corpo, um sentimento, uma experiência partilhada e tudo junto. Ou mesmo uma casinha quente e confortável – como disse Beyoncé, “lar é onde estiver o coração”.

Em idos de março, meses antes do lançamento, eu comentava a urgência das vozes nos poemas em correspondência com Bianca. Vozes já presentes nos textos que eram publicados no estive em SP e não me lembrei de você, blog que ela gerenciava, salvo engano, desde 2014. No meu caso, a identificação foi instantânea. Hoje leio o seu livro com a mesma sensação e penso: quantas vozes ecoam pr’além da minha na leitura destes poemas? É possível seguir. Não estamos sozinhos.

Em tempos de resgate da censura, os mil altânticos inspiram mudança e incômodo diante da sociedade. Saio outro de uma leitura que coloca possibilidades e reforça a ideia de que não estamos sozinhas/sozinhos. É possível seguir escrevendo. Agora mais do que nunca.

Como se pesassem mil atlânticos pode ser adquirido através do site da editora Urutau ou da Livraria da Travessa.

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